As
cores da Bandeira Rio-Grandense
Eleito patrono dos Festejos Farroupilhas de
2011, uma das primeiras perguntas que a imprensa me fez foi: O que o senhor
pretende fazer durante as comemorações? Pregar idéias, respondi. A primeira
delas sobre o verdadeiro significado da Guerra dos Farrapos.
Depois de muitos anos convivendo
com o tema, não tenho a menor dúvida de que os farroupilhas lutaram contra o
Império e não contra o Brasil. Já no primeiro manifesto após a tomada pacífica
de Porto Alegre, publicado no dia 25 de setembro de 1835, Bento Gonçalves deixa
bem clara essa posição. A luta era conta o arbítrio dos prepostos imperiais,
que haviam fechado pelas armas a nossa Assembléia Legislativa (instalada há
apenas três meses), contra a corrupção, contra o abandono do Rio Grande do Sul
do ponto de vista administrativo: sem estradas, sem escolas, sem poder
judiciário. É preciso também não esquecer que a nossa independência tinha
apenas treze anos e estava ameaçada pelos restauradores, por aqueles que
desejavam a volta dos portugueses e eram chamados de “caramurus”. Tanto isso é
verdade, que o barco que levou Fernandes Braga, o presidente da província, em
sua fuga para Rio Grande foi escoltado por navios de guerra de Portugal.
A palavra farroupilha, ao contrário
da crença geral, não surgiu no Rio Grande do Sul e sim no Rio de Janeiro.
Chamava-se “A Trombeta Farroupilha” um jornal que defendia os excluídos e lutou
pela queda de D. Pedro I, em 1831. Esses liberais, que pregavam a República,
eram geralmente maçons e atuaram em diversas províncias brasileiras. Foram eles
que tentaram tirar Bento Gonçalves da Fortaleza da Laje, na entrada da Baía da
Guanabara e conseguiram sua evasão na Bahia. Foram eles que agitaram também
Minas Gerais e São Paulo, dentro do projeto de criar repúblicas nas diversas
províncias brasileiras e uni-las numa federação chamada Brasil.
Quando os farroupilhas mandaram
tropas para Santa Catarina (leia-se os lanceiros negros de Teixeira Nunes e os
marinheiros de Garibaldi), em julho de 1839, Bento Gonçalves escreveu um artigo
no jornal “O Povo” explicando que o plano era subir o mapa e apoiar todas as
novas repúblicas brasileiras. Se não fosse assim, o certo era fechar as
fronteiras e só pensar na República Rio-Grandense, tão carente de recursos para
sua própria sobrevivência.
Do ponto de vista simbólico, porém,
basta olhar as cores da Bandeira Rio-Grandense para entender que os
farroupilhas não eram separatistas. Se o fossem, por que manteriam as cores
verde e amarela? A faixa vermelha é a cor republicana tradicional. Nada mais
simples de entender. O verde-amarelo do Brasil, mas com o vermelho da
República.
Essa é a verdade histórica. Que
deve ser ensinada em todas as escolas brasileiras. Com a derrota dos
farroupilhas, o projeto republicano foi adiando por meio século. E já chegou
exaurido em 1889. Que foi mais um golpe de estado do que uma conquista popular.
Nós e a Legalidade
Alcy Cheuiche
Eu queimei a língua, como se dizia. Uma
semana antes da renúncia de Jânio Quadros, afirmei a meu pai, veterano das
revoluções de 1930 e 32: nossa geração não faria o que vocês fizeram. Ele
sorriu e disse simplesmente: nós também pensávamos assim, até ver o povo gaúcho
brigando para entrar no trem de Getúlio Vargas. E minha mãe completou: as moças
até vaiavam nas ruas os rapazes que não se apresentaram como voluntários.
E eu vi, naqueles onze dias da
Legalidade, colegas que só pareciam interessados nos bailes da Reitoria
carregando faixas contra o golpe. Vi funcionários da Carris, com seus uniformes
de trabalho, fazendo ordem unida e marchando em direção ao Piratini. Vi a
fantástica unidade da Brigada Militar, nenhuma deserção em seus quadros,
garantindo a façanha de Leonel Brizola. Ouvi pelo rádio o apelo do jovem
governador, suas palavras que tocavam em nossos brios, que nos convocavam para
impedir o golpe dos ministros militares. E fiquei ombro a ombro, na frente do
Palácio, com homens e mulheres, de todas as idades, que dali não se afastaram,
nem mesmo com as ameaças (muito reais) de bombardeio aéreo.
Até hoje, quando penso no Hino da
Legalidade, é com a voz da minha avó materna que recordo as palavras que nos
empolgavam: avante, brasileiros, de pé, unidos pela liberdade! Lembro dela, com
mais de oitenta anos, os cabelos muito brancos, pegando sua bolsa e dizendo
para os netos: se vocês não me levarem para a praça, eu irei sozinha. E ela foi
e estava lá conosco quando Brizola e Machado Lopes apertaram suas mãos, selando
a união civil e militar que garantiu a posse de João Goulart como Presidente da
República.
Que opinião posso dar hoje,
meio século depois, sobre o desfecho desse fantástico movimento popular? Eu
tinha vinte anos, passara muitos dias com um revólver Colt 38 na cintura, o
mesmo que meu pai usara em 1930 e 32, e ansiava por levar João Goulart até
Brasília. E fiquei estupefato, como a multidão de cinquenta mil pessoas que o
esperava na Praça da Matriz, quando ele apenas acenou e não disse uma palavra,
nem de agradecimento, ao povo que se dispusera a morrer por ele.
Durante a longa viagem da
China ao Brasil, Jango, que era um político experiente, discípulo de Getúlio
Vargas, deve ter avaliado que nessa marcha para empossá-lo correria muito
sangue (o que as últimas reportagens de ZH mostram que era verdade). Ele
preferiu não empolgar mais a multidão e, mesmo podendo ser chamado de covarde,
aceitou o caminho da conciliação. E assumiu com menos poderes num regime
parlamentarista aprovado às pressas pelo Congresso Nacional.
Com vinte anos, eu jamais
poderia aceitar aquele conchavo. Com setenta, penso que, se não fosse o bom
senso de João Goulart, talvez eu não estivesse aqui para contar esta história.
Grenal no Maracanã
Alcy Cheuiche
O futebol é um dos poucos
esportes coletivos, talvez o único, em que o pior pode ganhar do melhor, e até
com facilidade. E nisso reside seu charme. E, por isso, a Fifa não aceita
juízes eletrônicos. Os erros do juiz e dos bandeirinhas fazem parte da regra do
jogo. Mexem com a lógica da partida e, por essa e outras razões, como dizia
Ildo Meneghetti, futebol não tem lógica.
Em 16 de julho de 1950, o
Brasil estava pronto para ser campeão do mundo. Ninguém jogaria um níquel, como
dizia a minha Vó Jenny, na vitória dos uruguaios. E deu no que deu. Éramos
muito melhores, e eles nos esmagaram em pleno Maracanã.
Domingo que vem, naquele
mesmo estádio, cujo nome recorda um periquito em extinção, o Brasil vai tirar
uma dúvida a respeito dos gaúchos. Se o Grêmio entrar em campo para perder do
Flamengo, é melhor que os responsáveis por isso esqueçam do hino rio-grandense.
Pois não basta para ser livre, ser forte aguerrido e bravo, povo que não tem
virtude, acaba por ser escravo.
Acima de qualquer paixão
futebolística, está em jogo a honestidade, o fio de bigode, a vergonha na cara.
E não me venham com essa de que razões históricas sempre nos separaram em
grupos irreconciliáveis: farroupilhas e caramurus, picapaus e federalistas,
chimangos e maragatos. Em 1930, os maragatos de Assis Brasil se uniram aos
chimangos de Getúlio Vargas para que pudéssemos derrubar a República Velha,
carcomida por vícios eleitorais e pela corrupção. Rio Grande, de pé pelo
Brasil, foi a frase de Getúlio que mobilizou os gaúchos de todas as crenças.
No Maracanã, domingo
próximo, o Grêmio vai decidir se é gaúcho ou não, se é guerreiro para enfrentar
cem mil flamenguistas ou prefere se encolher para prejudicar o Internacional.
Duvido que se acovarde. Principalmente se mandar para o Rio de Janeiro
jogadores e dirigentes com a alma tricolor, capazes de honrar a garra e o
panache de Osvaldo Rolla, o Foguinho imortal.
Gostaram do meu discurso?
Alguém ainda tem dúvida? É claro que eu sou colorado.
Quero ficar só...
Alcy Cheuiche*
Com a frase acima, Beppino
Englaro, pai da jovem italiana submetida à eutanásia, pediu alguns momentos
para sofrer em paz. Mas não os terá, certamente. Ele ousou desafiar
preconceitos milenares e vai pagar por isso. Queira ou não queira, continuará
sendo usado como messias ou bode expiatório das duas correntes que são contra
ou a favor do direito de morrer. Na Itália, lideradas, neste momento, de forma
antagônica, pelo presidente Giorgio Napolitano (a favor) e pelo
primeiro-ministro Silvio Berlusconi (contra).
Eutanásia, do grego eu, bem,
e thanatos, morte, significa morte sem sofrimento. Duvido que haja um único
médico no mundo que não a tenha usado, de forma leve ou extrema, para abreviar
o sofrimento, apressar um pouco a morte de um paciente terminal. Mas eles não
podem revelar esses atos humanitários, felizmente reconhecidos in extremis pela
própria lei. Afinal, foi a Suprema Corte da Itália que deu ganho de causa à
família Englaro para que a eutanásia fosse praticada.
Vejamos em síntese o caso
clínico da infeliz Eluana. Em 1992, aos 21 anos de idade, após um acidente
automobilístico, sofreu morte cerebral e ficou em estado vegetativo. Ou seja,
seu cérebro morreu e, com ele, toda sua identidade humana, suas lembranças
registradas desde que nasceu ou foi concebida, como queiram os adeptos de outra
polêmica sobre os direitos dos fetos e embriões. Desde essa primeira morte,
Eluana ficou dezessete anos à mercê de um sistema artificial de alimentação e
hidratação, que, finalmente foi desligado, permitindo a seu corpo o descanso
final.
Um arcebispo da igreja
católica, conforme a imprensa italiana, ameaçou de excomunhão a quem
interviesse para desligar os aparelhos de Eluana. Outras igrejas cristãs, como
sabemos, proíbem seus crentes até de praticarem uma simples transfusão de
sangue, para não contrariarem os projetos de Deus. Duas posições extremas, no
meu entender, e ambas erradas, porque não consideram a opinião médica, a lei e
o desejo final do paciente.
Neste caso, Beppino Englaro
explicou muitas vezes a razão porque a família lutava pelo direito de desligar
os aparelhos. Ele afirma que Eluana disse, alguns dias antes do acidente, que
não desejaria ser mantida em vida se lhe ocorresse um fato semelhante. Absurdo?
Premonições como esta não são raras, embora ainda sem explicação, nem
científica, nem religiosa.
Diante de tudo que ouvimos e
lemos até agora, a solução que nos parece mais coerente é a de colocar na
carteira de identidade de cada cidadão sua opção ou não pela eutanásia, junto
com a que damos autorização ou não do uso de nossos órgãos para transplante.
Assim, nenhum Berlusconi ou
Napolitano, daquela ou destas plagas, irá nos usar para seus projetos políticos
que, esses sim, podem estar acima da vida e da morte do cidadão comum.
Adeus a nossa mãe
Alcy Cheuiche*
Ela nunca perdeu a ternura,
mas foi uma mulher valente. Sob uma aparência frágil, ocultava um temperamento
guerreiro. Nunca sentia medo, nem de raio, nem de cobra, nem de aranha, nem das
dificuldades da vida. Cedia a todos os caprichos de seus entes queridos, mas
jamais transigia com seu código de honra. Não erguia a voz, mas sabia dizer,
quando necessário, a última palavra.
Zilah Maria Tavares Cheuiche
nasceu no sobrado de seu avô, o Barão de Santa Tecla, na cidade de Pelotas. Era
o dia 18 de maio de 1914 quando sua mãe, Jenny Garcia Tavares, deu à luz àquela
menina mimosa. Cabelos negros, pele clara, lindos olhos castanhos. O pai,
Alfredo da Silva Tavares, carregava em si a têmpera de uma família histórica,
desde a Revolução Farroupilha. Filho de barão, neto de visconde, era engenheiro
civil com curso de pós-graduação em Paris. Junto com aquele sobrado, herdara a
ideologia maragata dos federalistas de 1893.
Com nove anos de idade, em
outubro de 1923, mamãe foi despertada pelos latidos de seu cachorrinho Tim-Tim
e também ouviu um tiroteio. Logo seu pai entrou no quarto e lhe disse: fica
tranqüila, é o General Zeca Neto que está invadindo Pelotas. Eu e o Joaquim
vamos juntar-nos aos revolucionários.
Joaquim, Tecla, Luiz e
Janino eram os seus irmãos mais velhos. Amava a todos, com predileção recíproca
pelo último, homem do campo, como ela sempre foi. Mas sua primeira paixão foi
pelo pai, que a criou a sua imagem e semelhança: discreta, inteligente e forte.
Depois, aos vinte anos de idade, já morto o nosso avô, transferiu essa paixão
ao esposo, Alcy Vargas Cheuiche, um tenente veterinário, nascido em Caçapava do
Sul, que lutara nas revoluções de 1930 e 1932. E manteve esse amor pelo marido,
na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, a cada dia, a cada hora, em
sessenta e quatro anos de casamento.
Mamãe nasceu em Pelotas, mas
era alegretense por opção afetiva. Tinha 31 anos ao aqui chegar, em 1945,
quando nosso pai, promovido a capitão, veio servir no Sexto Regimento de
Cavalaria. Tinha 94 anos quando seu coração parou de bater, aqui nesta mesma
terra de Alegrete, neste domingo de sol, 28 de dezembro de 2008. Nunca optou
por morar em outra cidade, como Porto Alegre, Rio de Janeiro ou Brasília. Aqui
firmou suas raízes, aqui educou a todos nós.
Em Alegrete nasceu o Luiz
Antônio e ela se orgulhava muito disso. E vibrou, da sua maneira discreta,
quando, em 2004, no centenário do nosso pai, Lais, Lilia e eu, por generosidade
da Câmara de Vereadores, recebemos nossos títulos de Cidadãos Alegretenses.
Nossa mãe era tão singela,
tão despida de vaidades, que não a podemos descrever com superlativos. A imagem
que me vem à mente é sempre a mesma. Uma árvore quase centenária que tomba, mas
suavemente, sem machucar ninguém, quase sem ruído. E com ela também arrasta
para a terra seus galhos, suas folhas e frutos, os ninhos dos pássaros, todas
as manifestações da vida.
Nossa mãe, avó e bisavó
acaba de morrer, depois de passar conosco seu último Natal. Mas as crianças que
somos, ou vivem dentro de nós, como dizia o Mario Quintana, vão continuar
vivendo. E lembrarão sempre da sua generosidade, da sua paciência com todas as
nossas falhas. Da sua preferência pelos humildes. De seu apoio incondicional a
todas as causas do “General da Educação”.
Sem jamais subir ao palco,
Zilah MariaTavares Cheuiche participou de todos os atos comunitários, de todos
os sonhos de progresso social e econômico de Alegrete, curando as feridas do
guerreiro que foi o nosso pai. E agora, novamente ao lado dele, é mais uma
semente de ouro, de amor e paz, depositada na terra que ela tanto amou.
Ideias não são metais que se fundem
Alcy Cheuiche*
Discute-te sobre o
deslocamento dos restos mortais de Gaspar Silveira Martins de Bagé para a
cidade gaúcha que recebeu seu nome. Não em definitivo, é claro, que isso os
bageenses jamais tolerariam. Mas assim como um “passeio histórico” para honrar
o grande político brasileiro em data de importância para a comuna de Silveira
Martins.
Não vou entrar na polêmica sobre a
conveniência ou não de mexer com os despojos do líder federalista. Mas fiquei
fascinado com a oportunidade que o fato nos dá de recordar seus feitos e,
principalmente, suas idéias. Pois isso, acima de tudo, define sua biografia. Um
pregador de idéias. Uma mente poderosa a serviço da liberdade e da democracia.
Silveira Martins foi o líder
intelectual da Revolução Federalista de 1893 que enfrentou a ditadura de Julio
de Castilhos, legalizada pela Constituição de 1891, escrita pelo próprio
Castilhos. Isto é, legalmente, o poder executivo tinha poderes ditatoriais. Mas
nem sempre o que é legal é justo. E foi em busca da justiça que Silveira
Martins, Joca Tavares, Gumercindo Saraiva e tantos outros líderes
rio-grandenses lutaram contra a deturpação do regime republicano.
A República nasceu no mundo, todos
sabemos, sob a égide do lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Assim, se
não há liberdade de eleger seus dirigentes, se não há liberdade de criticá-los
nos bares, nos lares, nos parlamentos,
na imprensa, mesmo se essas críticas forem injustas, não há regime republicano.
Numa república, existem mecanismos para defender o cidadão contra o estado e o
estado contra o cidadão. Para os reis
absolutistas, vale sempre lembrar, qualquer crítica era uma ofensa lesa
majestade, qualquer opositor um candidato à prisão ou à morte. L’état c’est moi,
disse Luís XIV, quando um ministro alertou-o de que suas ordens contrariavam as
leis do estado, as leis da França. Com essa frase, esgotou a possibilidade de
uma monarquia democrática no seu país, como existe hoje na Espanha, por
exemplo, e incentivou a revolta que iria mais tarde derrubar a bastilha e
guilhotinar Luís XVI.
Chegando legalmente ao poder na
Venezuela, mas depois de uma tentativa de golpe militar, Hugo Chaves está
seguindo a risca a cartilha para transformar-se de presidente em ditador.
Começou governando com um parlamento livre e agora governa por decreto. Foi
eleito com liberdade de imprensa e agora não aceita a mínima crítica ao seu
governo. Qual é a ideologia do nosso Presidente que o chama de democrata e
companheiro, discursa como se ainda fosse um líder operário, mas propicia aos
bancos os maiores lucros da história do Brasil? Qual a ideologia de quem tenta
fundir em seu governo as idéias antagônicas e muitas vezes oportunistas de onze
partidos políticos?
Idéias não são metais que se
fundem, disse Gaspar da Silveira Martins. Porque, segundo ele, só se fundem nas
caldeiras da ditadura e da corrupção.