Se eu disser pra você que hoje
acordei triste, que foi difícil sair da cama, mesmo sabendo que o sol estava se
exibindo lá fora e o céu convidava para a farra de viver, mesmo sabendo que
havia muitas providências a tomar, acordei triste e tive preguiça de cumprir os
rituais que faço sem nem prestar atenção no que estou sentindo, como tomar
banho, colocar uma roupa, ir pro computador, sair pra compras e reuniões – se
eu disser que foi assim, o que você me diz? Se eu lhe disser que hoje não foi
um dia como os outros, que não encontrei energia nem pra sentir culpa pela
minha letargia, que hoje levantei devagar e tarde e que não tive vontade de
nada, você vai reagir como?
Você vai dizer “te anima” e me
recomendar um antidepressivo, ou vai dizer que tem gente vivendo coisas muito
mais graves do que eu (mesmo desconhecendo a razão da minha tristeza), vai
dizer pra eu colocar uma roupa leve, ouvir uma música revigorante e voltar a
ser aquela que sempre fui, velha de guerra.
Você vai fazer isso porque gosta
de mim, mas também porque é mais um que não tolera a tristeza: nem a minha, nem
a sua, nem a de ninguém. Tristeza é considerada uma anomalia do humor, uma
doença contagiosa, que é melhor eliminar desde o primeiro sintoma. Não sorriu
hoje? Medicamento. Sentiu uma vontade de chorar à toa? Gravíssimo, telefone já
para o seu psiquiatra.
A verdade é que eu não acordei
triste hoje, nem mesmo com uma suave melancolia, está tudo normal. Mas quando
fico triste, também está tudo normal. Porque ficar triste é comum, é um
sentimento tão legítimo quanto a alegria, é um registro de nossa sensibilidade,
que ora gargalha em grupo, ora busca o silêncio e a solidão. Estar triste não é
estar deprimido.
Depressão é coisa muito séria,
contínua e complexa. Estar triste é estar atento a si próprio, é estar
desapontado com alguém, com vários ou consigo mesmo, é estar um pouco cansado
de certas repetições, é descobrir-se frágil num dia qualquer, sem uma razão
aparente – as razões têm essa mania de serem discretas.
“Eu não sei o que meu corpo
abriga/ nestas noites quentes de verão/ e não me importa que mil raios partam/
qualquer sentido vago da razão/ eu ando tão down...” Lembra da música? Cazuza
ainda dizia, lá no meio dos versos, que pega mal sofrer. Pois é, pega mal.
Melhor sair pra balada, melhor forçar um sorriso, melhor dizer que está tudo
bem, melhor desamarrar a cara. “Não quero te ver triste assim”, sussurrava
Roberto Carlos em meio a outra música. Todos cantam a tristeza, mas poucos a
enfrentam de fato. Os esforços não são para compreendê-la, e sim para
disfarçá-la, sufocá-la, ela que, humilde, só quer usufruir do seu direito de
existir, de assegurar seu espaço nesta sociedade que exalta apenas o oba-oba e
a verborragia, e que desconfia de quem está calado demais. Claro que é melhor
ser alegre que ser triste (agora é Vinícius), mas melhor mesmo é ninguém privar
você de sentir o que for. Em tempo: na maioria das vezes, é a gente mesmo que
não se permite estar alguns degraus abaixo da euforia.
Tem dias que não estamos pra
samba, pra rock, pra hip-hop, e nem pra isso devemos buscar pílulas mágicas
para camuflar nossa introspecção, nem aceitar convites para festas em que nada
temos para brindar. Que nos deixem quietos, que quietude é armazenamento de
força e sabedoria, daqui a pouco a gente volta, a gente sempre volta,
anunciando o fim de mais uma dor – até que venha a próxima, normais que somos.
Martha Medeiros
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